A acentuada crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus colocou fim ao “sonho americano” de muitos brasileiros que trabalhavam na construção civil nos EUA. Com o súbito fechamento dos postos de trabalho, os imigrantes indocumentados se veem obrigados a pedir cestas básicas e buscam até empréstimo para voltar ao Brasil.
“Já estava querendo voltar antes dessa crise. Agora parou tudo. Tive que pedir um empréstimo para comprar a passagem. Se não houver mudança no voo, na segunda-feira (4) embarco. Estou aliviado porque vou sair desse pesadelo”, contou ao G1 o mineiro Gutemberg Mozart, de 52 anos. ‘”Com o coronavírus, os EUA acabaram para o imigrante. Está insustentável'”.
Mineiro Gutemberg Mozart pegou empréstimo para voltar ao Brasil — Foto: Arquivo Pessoal
O mineiro de Belo Horizonte, que está nos Estados Unidos desde 2014, viu as oportunidades de trabalho desaparecerem após as medidas para contenção do vírus paralisarem a construção civil, área que emprega muitos brasileiros no país.
“Os trabalhos pararam de uma vez. Para não deixar a gente parado de tudo, o empregador montou um tipo de rodízio e cada dia um trabalha. Mas como você vai manter o aluguel, que é caríssimo?”, indaga.
–:–/–:–
Sem emprego, brasileiros cestas básicas de ONG’s durante confinamento nos EUA
Como não tem a documentação regularizada, o morador de Nova Jersey não teve acesso à ajuda do governo e pediu ajuda de uma ONG para se alimentar.
Na construção, ele conta que o trabalhador consegue tirar de US$ 120 a US$ 150 por dia, porém o aluguel não sai por menos de US$ 1,5 mil.
“Não bebo, não fumo e não guardei dinheiro. Nesses quase seis anos, eu mandei R$ 20 mil para o Brasil e foi tudo. Tem muita gente que mente. Para ganhar dinheiro aqui tem que usar a mesma roupa a semana toda. Não pode fazer nenhum tipo de gracinha”.
Quando chegou, o mineiro conta que trabalhou muito e que chegou a ter problemas de coluna por carregar excesso de peso.
“A vida do imigrante nos Estados Unidos é uma grande ilusão, é uma grande propaganda de Hollywood. Quando você pensa no sonho americano, você está vivendo o sonho do americano e não o seu! Está comprando a fantasia dele. Está sendo explorado por ele em troca de um tênis, de um carro”, desabafa.
Além das duas malas que poderá despachar no voo, Gutemberg queria enviar uma caixa em um contêiner com material de trabalho adquirido nos últimos anos. “São coisas que eu poderia usar no Brasil, mas provavelmente vou perder porque não vou conseguir os US$ 545 para mandar”.
‘Minha vida virou de cabeça para baixo’
Representante comercial mineiro quer pagar contas e voltar para o Brasil — Foto: Arquivo pessoal
A crise provocada pelo coronavírus também fez um representante comercial de 50 anos, morador da Filadélfia, no estado da Pensilvânia, desistir dos Estados Unidos. Endividado e sem emprego, ele já não tem como manter a mulher e os dois filhos.
“Não pensava em ir embora, nós tínhamos outras ideias de negócio. Essa crise virou minha vida de cabeça para baixo. Estou cansado, desesperado para poder voltar. Quero sumir o mais rápido possível”, afirma o mineiro que desde 2015 mora nos EUA.
As suas dívidas já somam cerca de US$ 4 mil. “Tem um aluguel atrasado e outro vence daqui a uns dias. Já recebi uma mensagem de que vão cortar telefone, água e gás no dia 21 de maio. Sem o telefone, não consigo trabalhar.”
O aluguel é uma das dívidas que mais preocupa. “Aqui não é como no Brasil que falam: ‘coitadinho, não conseguiu pagar o aluguel’. O xerife vem na sua casa e te coloca para fora. Quando cheguei, visitei várias casas com roupas e móveis dentro. Se isso acontece comigo, como vou fazer com a minha família?”
Após o “lockdown” (que, em inglês, significa confinamento) começar a vigorar em março no seu estado, ele ficou sem trabalho. O vendedor de pisos e carpetes agora atua como motorista de aplicativo e diz que consegue fazer até US$ 80 por dia de trabalho, o que é insuficiente para pagar suas despesas fixas.
Pré-diabético, ele já apresentou sintomas de Covid-19 e fez o teste para a doença duas vezes – a última na semana passada. A tosse insistente, porém, persiste.
“Os testes deram negativo. Ontem, o passageiro ligou para empresa de dentro do carro para me denunciar. Não tive coragem de ligar o celular hoje para ver se me afastaram”.
Como não tem a documentação regularizada, apenas o filho de 3 anos, que já nasceu na Filadélfia com um problema renal, recebe uma ajuda de custo do governo. “Com a ajuda de US$ 194 compramos comida.”
Inicialmente, ele pensou que conseguiria voltar ao Brasil em junho, mas já viu que vai ser “impossível”.
“O consulado diz que não pode ajudar, só me indicou uma ONG que ofereceu ajuda com alimentação. Eu só quero pagar as contas e sair daqui o mais rápido possível. Quero ver meus pais, que são idosos. Só quero ter uma casinha com um pé de jabuticaba no Brasil.”
‘Era para ser a viagem dos sonhos’
Jamilli e Rafael, que estão em Nova Jersey (EUA), já tiveram três voos cancelados — Foto: Arquivo Pessoal
A recepcionista Jamilli Netto Damasceno, de 24 anos, e o marido Rafael Geovane Damasceno, de 27, que são de Ribeirão Preto, chegaram aos Estados Unidos no dia 19 de março com uma passagem marcada para voltar 15 dias depois. Porém, a ideia inicial era estender a permanência por mais alguns meses.
“A gente tinha intenção de trabalhar e juntar um dinheiro para reformar a nossa casa, que é simples. E também guardar para poder ter um filho mais para frente”, conta Jamilli.
A amiga dela a ajudaria a encontrar trabalho na área da limpeza e para o marido dela na construção civil. Rafael chegou a trabalhar um dia e, logo depois, as oportunidades de emprego para os recém-chegados simplesmente desapareceram.
Cientes da gravidade da situação, eles decidiram utilizar a passagem de volta, mas foi aí que começou o drama do casal: o voo foi cancelado. Desde então, a companhia aérea já remarcou três vezes o voo: para o dia 7 de abril, 8 de maio e, agora, 2 de junho.
“Mas será que esse voo de junho vai dar certo? Não vou aguentar ficar até lá. Nós só temos US$ 75. Era para ser a viagem dos sonhos, sabe? Mas estou detestando. Era para estar feliz, mas estou triste. A gente só quer pegar nossas coisas e ir embora”, afirma.
Impacto do vírus nos EUA
Líderes de ONGs e associações que ajudam a comunidade brasileira e latina em vários estados americanos dizem que esses relatos se tornaram comuns após as restrições nos EUA para conter o avanço do novo coronavírus.
Com mais de 1 milhão de infectados, os EUA estão no topo do ranking dos países mais atingidos pela pandemia feito pela universidade Johns Hopkins. O número de mortos já passa de 61 mil, sendo que o estado de Nova York tornou-se no país o centro da pandemia.
Quando o primeiro caso oficial surgiu no país, o presidente Donald Trump afirmou que a situação estava sob controle.
Alvo de críticas violentas, Trump paulatinamente amenizou o discurso.Ele suspendeu os voos vindos da Europa, na época epicentro da doença, e passou a recomendar que idosos ficassem em casa. Em 13 de março, Trump decretou emergência nacional o que permite ao governo enviar US$ 50 bilhões aos estados para ajudar no controle da pandemia.
A escalada da doença foi rápida e os governadores passaram a anunciar medidas que restringiam a circulação e atingiam, entre outros setores, a construção civil, que emprega muitos imigrantes indocumentados.
Milhares de marmitas e cestas básicas
Imigrante recebe cesta básica em Allston, em Massachusetts, nos Estados Unidos, na quarta-feira (29) Brazilian — Foto: Worker Center/ Divulgação
Houve a distribuição de uma ajuda governamental de até US$ 1,2 mil para imigrantes, mas era preciso ter o número de social security, que tem uma função similar ao CPF no Brasil, e pagar regularmente impostos no país. Essas condições impostas por vários estados excluem os brasileiros chamados indocumentados. O Itamaraty estima, de acordo com a agência Reuters, que 1,7 milhão de brasileiros vivam no país.
A coordenadora da ONG Mantena, Solange Paizante, conta que o grupo costumava distribuir ajuda para cerca de 50 famílias mensalmente na região de Nova Jersey, estado vizinho a Nova York.
“Essa crise pegou todos de surpresa. Muitas famílias não têm condições de fazer uma reserva. Só nós já distribuímos 2880 cestas básicas e 2850 marmitas para famílias infectadas e acamadas”, conta.
A Brazilian Worker Center, em Massachusetts, que normalmente auxilia imigrantes em causas trabalhistas, acabou se voltando para uma ação emergencial. Já distribuiu quase 1,5 mil kits com arroz, feijão, macarrão, fubá, óleo, molho de tomate, enlatados e legumes. As famílias com crianças pequenas receberam ainda leite e fraldas. Imagens feitas na quarta-feira (29) na mostram filas dobrando o quarteirão à espera da ajuda do centro que fica em Allston.
Na Pensilvânia, a situação não é diferente, afirma a apresentadora da rádio Philly, Lana Palafox. Ela conta que seu programa mobilizava doadores de comida, fralda, remédios para os recém-chegados, mas que a pandemia obrigou a ampliar essa ajuda.
“A meta inicialmente era de 50 cestas-básicas, mas o programa Voz da Comunidade, Rádio Philly USA e Amigos por Filadélfia já distribuíram mais de 1000 cestas, 300 máscaras. Calculamos que a ajuda chegou a 3 mil pessoas”, conta Lana.
Procurado pelo G1, o Itamaraty não se manifestou sobre a situação da comunidade brasileira nos Estados Unidos ou programas que pudessem auxiliá-los.